in Revista de Urbanismo
Reabilitação ou gentrificação comercial? Discurso e práticas associadas à transformação dos mercados municipais de comércio em Portugal
Resumo:
Após um longo período de desinvestimento e declínio, nos últimos anos tem-se assistido a um crescente interesse na reabilitação dos mercados municipais em países europeus e sul-americanos, culminando frequentemente na gentrificação daqueles equipamentos comerciais. A nossa hipótese de trabalho é que alguns agentes na busca por boas práticas de planeamento urbano utilizam como referência certos mercados que, por via dos moldes usados para reabilitação, promovem processos de gentrificação. Face a uma aparente contradição entre os estudos académicos que confirmam a gentrificação dos mercados municipais reabilitados e a prática dos agentes políticos que encaram o atual molde de reabilitação como uma boa prática de planeamento urbano, temos como objectivo analisar e discutir no atual processo de reabilitação de mercados municipais em Portugal. Em termos metodológicos, este trabalho é suportado por uma abordagem qualitativa, baseando-se na análise teórica acerca da temática em causa e em entrevistas realizadas a responsáveis de três Câmaras Municipais portuguesas, assim como duas entrevistas a empresas de consultoria envolvidas no processo. Recorrendo ao quadro concetual da gentrificação para auxiliar na interpretação dos resultados, concluímos que a motivação para a reabilitação dos mercados é baseada numa leitura dos mercados em declínio e que os atuais moldes de intervenção se devem a estratégias de benchmarking e de transferências de modelos entendidos como sendo boas práticas, destacando-se, ainda, o papel das empresas de consultoria na sua disseminação.
Introdução
Há muito que os mercados são importantes equipamentos comerciais das áreas urbanas onde estão localizados ( González, 2019 ). Sendo o comércio um elemento fundamental na fundação, manutenção e crescimento das cidades, os mercados desde cedo assumiram papel fundamental no abastecimento da população (Vargas & Silva, 2020). A sua localização privilegiada no centro das cidades ou no centro dos novos bairros que surgiram com o crescimento das cidades conferiu a estes espaços uma relevância que vai além da mera dimensão económica. Para além desta última dimensão, os mercados, nas suas diferentes formas, têm também uma dimensão social e simbólica, na medida em que são espaços públicos para fruição social.
Com um pano de fundo comum ao que costuma ser denominado de feiras, os mercados, de forma mais ampla, abrangem tanto as feiras ao ar livre, os vendedores ambulantes e as feiras cobertas, como aquelas que decorriam com uma determinada periodicidade, seja semanal, mensal ou outra, ou eram permanentes.
Neste artigo, vamos concentrarmo-nos na versão moderna dos mercados, que ocorre em edifícios construídos para esse fim nas cidades. Embora outros termos possam ser usados para designar esses espaços comerciais ( González, 2019 ), as designações “mercados tradicionais de comércio” ou simplesmente “mercado” serão as preferidas de agora em diante.
A mudança de feiras ao ar livre para mercados cobertos obedece a novos requisitos de higiene e saneamento, mas também como um mecanismo do setor público para melhorar o controlo das cadeias de abastecimento ( Guimarães, 2020 ). Muitas vezes esses novos edifícios foram construídos com significativo valor arquitetónico ( Vargas, 2017 ), o que significa que a designação de mercado e o seu valor permanecem até hoje mesmo quando a atividade comercial no seu interior já não existe, reforçando o caráter simbólico dos espaços e tornando-se marcos de suas cidades. O mero título de mercado ainda possui uma certa associação positiva, da qual o uso da designação market town utilizada em países como o Reino Unido (Hallsworth et al., 2015) e outras denominações, como Feira Franca, em Portugal, o comprovam.
Na segunda metade do século xx, o surgimento de novas formas de comércio, a par das mudanças societais e do desenvolvimento urbano, colocaram em causa a viabilidade económica da atividade comercial dos mercados retalhistas tradicionais, embora continuando a ser elementos importantes para o abastecimento da população ( Guimarães, 2018 ; Pintaudi, 2006 ). Este período é caracterizado pelo desinvestimento progressivo e abandono dos mercados e seu consequente declínio, especialmente nas grandes cidades do mundo desenvolvido.
Os mercados localizados nos principais centros das cidades sofreram os efeitos da perda de centralidade e acessibilidade dessas áreas e os mercados localizados nos principais bairros residenciais mostraram- se incapazes de competir com os novos formatos comerciais, especialmente com os especializados em comércio alimentar. Tal compreensão evolucionária, quase determinista, do comércio é, no entanto, contestada por alguns autores que defendem que o declínio dos mercados foi desencadeado pelo setor público ao não investir nestes espaços de comércio (Gónzalez & Waley, 2013). Este discurso assenta fundamentalmente na dimensão socioeconómica dos mercados, que subjaz a relevância dos mercados para a comunidade local ( Guimarães, 2018 ), que contribui para uma oferta retalhista diversificada e para um abastecimento alimentar abrangente, essencial para a sustentabilidade social. Como Castillo assume (2003, em Delgadillo, 2018 , p. 25), quando refere o caso da Cidade do México, num desenvolvimento semelhante ao que aconteceu em outros países: “Para muitos governos, os canais tradicionais de abastecimento são ineficientes, ineficazes e um fardo para a modernização do abastecimento; e os mercados públicos estão dilapidados e obsoletos em termos físicos, funcionais e económicos, devendo, por isso, ser renovados e modernizados” (tradução do autor).
Nas últimas décadas, testemunhou-se um interesse global na reabilitação dos mercados tradicionais de comércio. O termo “reabilitação” tem sido frequentemente usado como sinónimo de urban redevelopment ou urban renewal, na versão anglo-saxónica, para designar intervenções urbanas mais abrangentes (Sing et al., 2019 ). No caso dos estudos recentes sobre os mercados públicos, reabilitação deve ser entendida não apenas como a melhoria do edificado que alberga a função de mercado, mas também as alterações de natureza funcional que têm caracterizado as intervenções na última década. Na base destas intervenções está a desvalorização a que foram submetidos, diminuindo o seu valor, que combinada com a sua importância simbólica e arquitetónica, dotou estes equipamentos de uma significativa rent gap, entendida, segundo a perspetiva de Smith (1987 ), enquanto a diferença do valor atual da “renda” e a que potencialmente pode ser obtida com um novo e “melhor” uso. Através do recurso à teoria de gentrificação, vários investigadores e investigadoras têm analisado esta transformação e produzido um conjunto significativo de publicações, usualmente em estudos de caso centrados em mercados localizados em vários países europeus e da América do Sul (ver por exemplo, o livro editado por Delgadillo & Niglio, 2020a), comprovando a existência de impactos negativos nos recentes processos de transformação dos mercados tradicionais de comércio, que menospreza a sua função de locais de abastecimento da população local em detrimento da nova vocação, enquanto espaços-síntese de lazer, consumo e entretenimento. Apesar do consenso académico, da parte das autoridades públicas, assiste-se a um contínuo investimento na reabilitação destes espaços comerciais adotando os mesmos modelos de intervenção.
Assim, definimos como questão de investigação para este estudo: “De que forma é que esta semelhança dos processos de reabilitação está relacionada com a transferência de políticas e com o papel de agentes distintos neste processo?”. De forma contextual e assumindo o declínio de uma parte significativa dos mercados municipais em Portugal, também procuramos discutir “Qual o interesse pela reabilitação dos mercados após o seu declínio”. A hipótese definida para este trabalho é que os mercados municipais ainda possuem validade enquanto equipamentos comerciais e que a semelhança ao nível dos procedimentos, práticas e consequências resulta de um processo de transferência de políticas, a várias escalas, em que a reabilitação dos mercados de acordo com os moldes acima referidos é percecionada enquanto uma boa prática de planeamento urbano por diferentes agentes públicos e privados, negligenciando os aspetos negativos já confirmados pelos estudos académicos. O nosso estudo centra-se no processo em curso em Portugal. Também temos como hipótese de trabalho, na sequência de outros estudos já realizados sobre o tema, que neste país existe a intenção de se proceder à reabilitação dos mercados municipais nos mesmos moldes acima referidos. Iremos, contudo, de seguida, procurar demonstrar evidências de tais práticas, até porque a validação desta hipótese de trabalho afigura-se como um pressuposto relevante da componente empírica deste estudo.
A transferência de políticas é uma prática na qual se reconhece a mais-valia de determinada política e através da qual esta política é transferida e adotada em outro contexto (Zhang & Yu, 2019). Enquanto prática, a transferência de políticas não é recente. No entanto, tem vindo a acentuar-se com o advento da globalização e com a melhoria dos meios de comunicação (Dolowitz & Marsh, 1996; Peck & Theodore, 2010). Os diversos estudos sobre a transformação dos mercados assumem a semelhança da reabilitação dos mercados, quer à escala nacional, quer à escala internacional, e analisam sobretudo os impactos resultantes de tal transformação e a forte carga neoliberal que lhe está associada. Tem ficado por analisar de que forma é que esta semelhança se relaciona com a transferência de políticas e o papel de distintos agentes neste processo. Este artigo almeja contribuir para suprir parte desta lacuna, delimitando desta forma o triplo objectivo de: (1) discutir o conceito de gentrificação aplicado aos mercados municipais, na sua dimensão internacional e na relação com processos de turistificação; (2) analisar a transferência de políticas associadas aos mercados municipais, com a identificação dos principais agentes envolvidos neste processo, e (3) consequentemente, analisar a dialética de aparente contradição entre os estudos académicos e as práticas das autoridades públicas locais que recorrem a modelos de intervenção alvo de críticas por parte da comunidade científica como exemplos de boas práticas de planeamento urbano.
Depois desta secção introdutória, de seguida iremos analisar o conceito de gentrificação comercial e como se reflete no caso específico dos mercados municipais de comércio. Na terceira secção iremos explanar as opções metodológicas adotadas para esta investigação, a que se segue a secção empírica com os casos de estudo. Por último, vamos elaborar as conclusões.
O enquadramento concetual da gentrificação comercial
Da gentrificação à gentrificação comercial
As cidades evoluem continuamente. Desta forma, é expectável que as cidades e os seus elementos definidores estejam em constante transformação (Hall & Barrett, 2018). Na génese do conceito de gentrificação está uma destas transformações. Ao analisar a transformação social em alguns bairros trabalhadores de Londres, nos anos 60, Ruth Glass cunhou o termo gentrificação ( Doucet, 2014 ) que, desde então, sobretudo mais recentemente, tem vindo a ganhar relevância no contexto dos estudos urbanos (Lees & Ferreri, 2016). Na aceção clássica, a gentrificação caracteriza-se pelo aparecimento de novos residentes em determinada área que, pela sua condição socioeconómica, substituem os anteriores residentes de menor rendimento (Davidson & Lees, 2005).
Tal modificação do tecido social não acontece dissociada de outros elementos característicos das áreas onde ocorre tal processo ( Barata-Salgueiro, 2017 ). De facto, estes novos residentes mais abastados impulsionam uma mudança mais abrangente da área, quer ao nível do espaço público, quer ao nível da oferta de bens e serviços. A gentrificação comercial surge assim como um desdobramento do conceito mais vasto de gentrificação para auxiliar na análise e compreensão de como o comércio e serviços age e reage numa determinada área gentrificada ou em gentrificação (Zukin et al., 2009). De forma sintética, tal como analisa Guimarães (2018 ), a gentrificação comercial é concetualizada como a substituição de um tecido comercial composto por lojas ditas tradicionais, mercearias, cafés e outros estabelecimentos diversos por estabelecimentos e restaurantes mais exclusivos que, por sua vez, se direcionam para um consumidor-tipo mais abastado e onde, usualmente, tão ou mais importante que a transação de determinados bens e serviços, é o ambiente onde o seu consumo se concretiza. Nos últimos anos, o processo de transformação que carateriza a gentrificação comercial tem vindo a ganhar relevância na academia ( Hubbard, 2018 ). Este desenvolvimento deve-se à consciencialização de que a gentrificação comercial nem sempre é um processo acessório da evolução de setores como o residencial, mas também se desenvolve autonomamente. Por exemplo, Guimarães (2022 a) demonstra como a gentrificação comercial pode ocorrer sem estar associado à evolução de outro setor e de como, inclusive, pode promover a regeneração de bairros em declínio.
Turistificação e mudança comercial
Por via da forte ligação entre o comércio e as cidades, qualquer análise de gentrificação comercial não deve ser investigada sem considerar que tais processos não ocorrem isoladamente, mas, pelo contrário, podem ser explicados segundo a relação entre a evolução do comércio e dos outros setores e elementos que estruturam os ambientes urbanos. Nesse sentido, no presente, a compreensão dos processos de mudança comercial, sobretudo as que ocorrem nas áreas centrais das cidades de maior dimensão, não fica completo se não se tomar em consideração o papel modelador que o turismo atualmente desempenha nas áreas urbanas mais procuradas pelos turistas (Gravari-Barbas & Guinand, 2017). O que está em causa não é o setor turístico per se mas o elevado volume de turistas e a criação e adaptação de um amplo número de infraestruturas de apoio ao turismo, o que tem levado alguns autores a discutir o conceito de overtourism (Milano et al., 2019 ), isto é, o estádio atingido por alguns destinos turísticos onde os impactos negativos que decorrem do excesso de turismo ultrapassam os aspetos positivos ( Guimarães, 2021 ). Por sua vez, a estes impactos negativos tem sido atribuída a designação de turistificação (Barata-Salgueiro et al., 2017 ; Séraphin et al., 2019). Ainda que o sector residencial seja o mais afetado pelos impactos negativos do excesso de turistas num dado destino turístico, sobretudo pela adaptação dos alojamentos tradicionais em alojamentos temporários ao dispor dos turistas, o comércio também tem sido um setor em forte transformação, apontando-se a gentrificação comercial como uma das consequências de tal evolução, tal como analisado em alguns estudos sobre o tema (Loda et al., 2020 ). Como aponta Guimarães (2021 ; 2022b), a leitura dos processos de gentrificação comercial em áreas de overtourism deve ser mais profunda do que a mera análise da evolução do mix comercial. Deve analisar a forma como os estabelecimentos se adaptam aos novos consumidores, frequentemente utilizando elementos associados à autenticidade do lugar, o que aproxima este tipo de estudos de outras investigações concetualmente centradas na análise da autenticidade em destinos turísticos ( Cohen, 1988 , 2007). Contudo, deve ser realçado que, apesar da relação próxima entre turistificação e gentrificação comercial, esta última pode ocorrer independentemente de estar associado a um processo de turistificação. Neste nível, o estudo seminal de Zukin et al. (2009) mostra como a gentrificação comercial pode ocorrer em moldes semelhantes aos da gentrificação residencial, sem ser fomentado pelo sector turístico. Não obstante, tal como discutido por Delgadillo & Niglio (2020b), a turistificação pode reforçar o processo de gentrificação, acentuando os seus efeitos. Desta forma, também podemos concluir que o aumento do turismo e os seus impactos no território é um exemplo da crescente globalização que provoca uma forte interação entre o global e o local (Pacione, 2005).
A reabilitação dos mercados à luz da teoria da gentrificação
A leitura da evolução dos mercados à luz da teoria da gentrificação leva em consideração o longo desinvestimento a que foram sujeitos. Este desinvestimento é temporal, por se estender no tempo, mas também é económico e urbanístico, porque inclui a ausência de obras de reabilitação que permitissem a reabilitação destes espaços comerciais. A relevância desta falta de investimento para o declínio dos mercados foi particularmente evidente porque coincidiu temporalmente com uma aceleração dos processos inovatórios no sector comercial, quer através do aparecimento e disseminação de novos formatos comerciais (Cachinho & Barata-Salgueiro, 2016) e consequente alteração nos padrões de consumo (Cordero & Eneva, 2017), quer através da reestruturação das estruturas hierárquicas de comércio até então vigentes (Karrholm, 2012). É por via do reconhecimento do prévio desinvestimento nos mercados tradicionais de comércio — públicos na sua gênese — que González & Waley (2013), na sua análise da evolução dos mercados no Reino Unido, assumiram que a atual transformação destes espaços comerciais estava a ocorrer no interior das fronteiras do que se pode considerar como gentrificação. A conexão entre a mera reabilitação dos mercados e o que se depreende de um contexto de gentrificação faz-se através da substituição forçada direta e indireta, tanto dos clientes como dos comerciantes, e pela alteração do produto transacionado que, por sua vez, pode reforçar a exclusão de parte dos clientes dos equipamentos comerciais gentrificados ( Guimarães, 2018 ).
O declínio dos mercados, cuja responsabilidade parcial deve ser incutida aos poderes públicos detentores dos espaços, permitiu a existência de uma rent gap, tal como define Neil Smith (1987 ), fomentando que aqueles espaços comerciais fossem alvo de interesse do setor privado como mecanismo de reprodução do capital. Essa evolução tem sido particularmente intensa porque tem sido exponenciada pela atual postura neoliberal no que respeita à governação das cidades (Sternberg & Anderson, 2014). O privilégio pela dimensão económica e a crescente relevância dos agentes privados na governança urbana tem promovido a comodificação das cidades. Numa leitura mais abrangente, é neste âmbito que encontramos parte das motivações recentes para a reabilitação dos mercados tradicionais de comércio, tal como destacado nos livros editados por González (2018 a) e Delgadillo & Niglio (2020a), fazendo parte de um conjunto mais vasto de ajustamentos que atualmente se verificam nas cidades para as alinhar à sociedade do consumo (Jayne, 2006).
Neste contexto, o termo “reabilitação” pode ser mobilizado para explicar duas intervenções distintas, mas interligadas. A primeira diz respeito à intervenção no edificado que comporta os mercados municipais, numa perspetiva dual, que comporta tanto a dimensão arquitetónica do edificado ( Vargas, 2017 ), como alterações de dimensão funcional que adaptam os mercados para novas funções. É por via desta adaptação a novas funções que se assiste ao surgir de várias críticas, alegando-se que existe uma substituição compulsiva de anteriores funções e clientes, situando tais intervenções como gentrificação comercial (González & Waley, 2013). O segundo tipo de intervenção no qual se pode utilizar o termo “reabilitação” neste tipo de estudos é mais abrangente e refere-se ao referido no parágrafo anterior, isto é, uma intervenção multi-dimensional que abrange áreas centrais, no contexto da adaptação das áreas centrais para espaços de consumo. Neste âmbito, “reabilitação” aproxima-se de conceitos como “regeneração”, tal como definido por Roberts & Sykes (2000) e tal como mobilizado por Thorsby & Petetskaya (2021) para o estudo de intervenções em espaços urbanos com património histórico. Nesta última perspetiva, a intervenção nos mercados municipais faz parte de um processo mais vasto. Não negligenciando a relevância de estudos mais abrangentes, o presente estudo foca-se na primeira tipologia de intervenção, circunscrita às intervenções realizadas de forma particular nos mercados.
A dimensão internacional da gentrificação dos mercados
Na redação da estrutura teórica deste texto optamos por adotar um nível de abstração e generalização relativamente elevado. No caso da discussão sobre a gentrificação comercial, esta opção deve-se à existência de pontos comuns parcialmente generalistas sobre a temática. Contudo, reconhece-se a existência de formas provinciais de gentrificação comercial. A este nível destaca-se o estudo de Zukin et al. (2009) que, usando os bairros de Williamsburg e Harlem, em Nova Iorque, como casos de estudo, nos mostra que mesmo numa mesma área urbana, a gentrificação, quer numa aceção ampla, quer num entendimento mais focado no tecido comercial, pode ocorrer de forma significativamente diferente. Isto corrobora o prévio estudo de Bridge & Dowling (2001) que demonstra como à escala local podemos encontrar processos de gentrificação a decorrer de forma diferenciada. Tal leitura multi-escalar da gentrificação comercial parece ser menos evidente quando nos debruçamos sobre os processos de transformação que têm vindo a ocorrer nos mercados municipais de distintos países.
A semelhança entre os mercados reabilitados de diversos países é visível em diversos estudos de análise comparativa internacional ( Escobedo, 2020 ; Lacarrieu, 2016 ; Mateos, 2017 ). Salinas & Cordero (2018) relacionam esta similitude nos procedimentos de reabilitação dos mercados às novas lógicas de governação das cidades, que salienta a competição entre cidades pela atração de investimentos. Estes autores destacam ainda que os mercados reabilitados e gentrificados servem de elemento atrativo das áreas urbanas onde se localizam. Assim, a associação de uma certa aura de sucesso às intervenções realizadas em alguns destes espaços comerciais que acabaram por se tornar destinos turísticos das suas cidades, como o mercado La Boquería, em Barcelona, e o mercado de San Miguel, em Madrid, leva a que sejam alvo de ações de benchmarking e considerados como modelos de boas práticas para disseminação internacional (Delgadillo & Niglio, 2020b). Ambos mercados assumem, desta forma, um papel central na transferência de políticas entre distintos contextos geográficos. Para este efeito, o benchmarking é considerado como o processo de comparação de processos, políticas e outros elementos com o objetivo de melhorar o desempenho daquilo que despoletou o processo. Tal como apurado por Stapenhurst (2009), a ação de comparação de desempenho pode ser executada por todas as organizações de natureza diferente, quer sejam líderes de determinado mercado, quer estejam hierarquicamente num patamar inferior. No entanto, se no primeiro caso, a ação de benchmarking tem como objetivo a manutenção da sua posição; no caso das restantes organizações, o benchmarking ambiciona melhorar determinados níveis de desempenho. Assim, como resultado de ações de benchmarking, procede-se à transferência de políticas que se assume como um campo de investigação consolidado, transversal a diferentes temáticas (McCann & Ward, 2013). A adopção daqueles modelos acima referidos como sendo de boas práticas está de acordo com Peck (2011 , p. 773), que assume que no presente se experienciam fast-policy regimes, caracterizados pela pragmática incorporação de políticas que parecem funcionar, em especial num prazo de tempo que admite como reduzido. Também se deve salientar que essenciais nesta mobilidade de políticas são os agentes responsáveis pela mesma ( Lovell, 2019 ), no qual se inclui agentes do setor público, assim como distintos representantes do sector privado, quer sejam multinacionais ou consultores. De facto, Hasan et al. (2020) chama à atenção que, no estudo de transferência de políticas, não é apenas a respetiva política que deve ser analisada. Estes autores clamam que os agentes responsáveis pela referida transferência são igualmente importantes, podendo inclusive alterar significativamente as características do objeto da transferência. Desta forma, na componente empírica do presente estudo, vamos abordar alguns destes agentes, a fim de complementar outros já existentes sobre a temática que se debruçam maioritariamente sobre a política transferida.
No presente, um conjunto significativo da literatura existente sobre o assunto enquadra a transformação dos mercados através da reformulação de espaços comerciais de abastecimento para locais de consumo e ócio. Ainda que nem sempre, e tal como referido anteriormente, este processo é frequentemente associado ao aumento do turismo ( Frago, 2017 ; Guimarães, 2018 ) e aos processos de turistificação discutidos anteriormente. Com frequência, o que está em causa é o aproveitamento da mais-valia arquitetónica ( Vargas, 2017 ) de parte dos edifícios que compõem os mercados, do qual o mercado de San Miguel ( Figura 1 ), em Madrid, é um dos exemplos mais usuais pelas características do edifício e pela sua localização central, numa área muito frequentada por turistas. De acordo com este entendimento, os mercados, entretanto, reabilitados e gentrificados, surgem enquanto veículos de políticas urbanas que almejam aumentar o volume de turistas numa determinada cidade ( Escobedo, 2020 ). Assim, se a reabilitação recente dos mercados é afetada e determinada pela evolução do sector do turismo, aqueles espaços comerciais também acabam por contribuir e exponenciar os efeitos da turistificação.
Metodologia
Na componente empírica da nossa investigação procuramos compreender as motivações das autoridades públicas, no que concerne ao atual modelo de reabilitação dos mercados municipais, visto enquanto paradigma de uma boa prática a ser replicada, e a aparente contradição com parte da discussão académica vigente que salienta alguns efeitos negativos do referido modelo.
A seguinte secção foi ancorada numa abordagem qualitativa, procurando contextualizar os resultados com a teoria existente. Procuramos recolher a informação sobre mercados municipais reabilitados ou em reabilitação em Portugal, tendo privilegiado dois métodos. No primeiro caso, optamos pela realização de entrevistas, quer aos responsáveis de Câmaras municipais com projetos em curso ou finalizado, quer a empresas envolvidas em alguma fase daquele processo. No segundo caso, sempre que existentes, consolidamos a informação recolhida pelo método anterior através da análise dos documentos técnicos ou estratégicos de suporte aos projetos de reabilitação dos mercados. Não limitamos a nossa análise a mercados específicos ou em semelhantes estádios de reabilitação, o que foi planeado por parte dos autores, por se considerar que a opção seguida pode fornecer uma visão mais abrangente de todo o processo.
No total, foram entrevistados representantes de três Câmaras Municipais, nomeadamente de Braga, Loures e Vila Nova de Famalicão, com papel ativo na reabilitação em curso ou já concluída dos respetivos mercados municipais. No primeiro caso, embora o entrevistado não faça parte do atual executivo da autarquia, foi um agente relevante na reabilitação do respetivo mercado. Foram ainda entrevistados responsáveis de duas empresas de consultoria envolvidas em vários processos de reabilitação dos mercados, o que se entendeu como sendo crucial para compreender a forma como mercados em áreas distintas seguem moldes de intervenção semelhantes.
Esta pesquisa foi desenvolvida durante a pandemia do Covid-19, o que limitou a realização de entrevistas presenciais. Apenas uma das entrevistas decorreu de modo presencial, sendo que outras duas foram online (Zoom), onde se gravou a entrevista para posterior análise, e as restantes duas por telefone, utilizando o método de note taking, o que permitiu ultrapassar não só as condicionantes da pandemia, mas também as distâncias físicas entre o autor e a localização dos entrevistados. As entrevistas tiveram lugar entre abril e novembro de 2021. De forma a complementar a informação recolhida nas entrevistas, sempre que possível, recolheu-se ou foram fornecidos os documentos de suporte de cada um dos projetos. A nossa opção metodológica permite-nos confrontar a componente teórica, já explorada na secção anterior, com a componente prática, desenvolvida pelas autarquias locais no âmbito do planeamento urbano e pelas empresas privadas de consultoria que incentivam a disseminação do respetivo modelo de intervenção, atuando como agentes de transferência de políticas.
A informação recolhida nas entrevistas foi analisada e incorporada no presente estudo, sendo assinalada pela descrição “comunicação pessoal x”, cuja lista se encontra no final do texto.
Os mercados objeto de discussão nas entrevistas realizadas são exemplos de mercados municipais tradicionais, construídos com a função de regular o abastecimento comercial do centro urbano onde se situam, cuja localização central é comprovada pela localização próxima às sedes das respetivas Câmaras Municipais. O mercado de Famalicão foi edificado em 1952 e ampliado duas décadas depois; o mercado de Braga data de 1956 e, por último, o equipamento de Loures entrou em funcionamento na década de 1970. Com exceção deste último mercado, cujo processo de reabilitação ainda se encontra a ser delineado, os restantes dois mercados já foram intervencionados e estão atualmente em funcionamento.
A reabilitação dos mercados em Portugal: atores e processos
A reabilitação de mercados em Portugal pode ser temporalmente circunscrita à última década. Não obstante, isso não implica que anteriormente aqueles espaços comerciais não tenham sido alvo de intervenções de melhoria. Uma leitura com a estrutura concetual da gentrificação comercial permite-nos considerar que aquelas intervenções, de reduzida profundidade, não permitiram que aqueles espaços comerciais — que continuaram e continuam a desempenhar um papel relevante ao nível do abastecimento no seio das comunidades onde se encontram localizados— fossem resilientes face à evolução da sociedade, das cidades e do setor comercial, o que contribuiu decisivamente para o seu desajustamento, declínio e consequente existência de uma rent gap.
Embora episódios pontuais de mercados reabilitados possam existir antes, grosso modo, a atual referência relativa à intervenção em mercados municipais em Portugal são os mercados Time Out Ribeira e o mercado de Campo de Ourique, ambos em Lisboa. O mercado da Ribeira foi inicialmente construído em 1882 e, desde então, já sofreu diversas remodelações incluindo algumas modificações ao nível dos produtos transacionados; enquanto o mercado de Campo de Ourique data de 1934. No início da década passada, em 2014 e 2013 respetivamente, a operação do espaço central de ambos os mercados foi concessionado a empresas privadas, sendo a intervenção realizada nestes mercados de Lisboa inspirada nos mercados reabilitados de Barcelona e Madrid (Câmara Municipal de Lisboa, 2016). Afere-se, assim, a ligação entre a turistificação e a gentrificação dos mercados municipais, definido como um dos objetivos desta investigação, na medida em que tanto nos mercados de Barcelona ( Frago, 2017 ), como nos de Madrid ( Mateos , 2020 ), está confirmada a ocorrência de processos de gentrificação. Entre outros elementos que foram intervencionados, destaca-se a criação de uma praça central de restauração. De acordo com estudos prévios sobre estes mercados ( Guimarães, 2019 , 2020), a modificação acabou por ser um elemento fundamental na sua gentrificação comercial, relevando para um patamar inferior a função de abastecimento da população local, em detrimento da orientação para o lazer e o consumo. Neste sentido, reconhece-se a importância das iniciativas de benchmarking a várias escalas: em primeiro lugar, na disseminação das intervenções realizadas em alguns mercados espanhóis como exemplo de boas práticas para intervenções similares em vários países (ver Delgadillo & Niglio, 2020b); em segundo lugar, a nível nacional, alguns dos mercados intervencionados em determinado país, acabam por servir de modelo para a reabilitação de outros mercados do mesmo país. Tal evolução está de acordo com a teoria da difusão das inovações de Rogers (1983), na medida em que o modelo é inicialmente testado em locais de maior procura e a sua validação leva a que seja exportado para locais de menor dimensão. É neste contexto que nos últimos anos um conjunto alargado de mercados municipais têm vindo a ser intervencionados, tal como se pode comprovar através de uma pesquisa aplicada online. A Tabela 1 foi compilada com informação daquela pesquisa e deve ser vista enquanto representativa e não como exaustiva, visto que os resultados obtidos através da query “reabilitação de mercado municipal” em Portugal são em número bastante superior. Desta pesquisa e dos casos representados na Tabela 1 conseguimos comprovar o interesse crescente pela reabilitação de mercados municipais em Portugal, assim como a atualidade do processo. Dos dez exemplos na Tabela 1 , cinco constituem projetos de reabilitação já concluídos entre 2019 e 2022, sendo que os restantes cinco representam projetos em curso, dos quais o mais antigo é de 2017. Em todos os casos, a reabilitação física do edifício do mercado é um aspeto referido. Frequentemente, existe informação que refere o objetivo de se proceder a um ajuste funcional, ainda que nem sempre este ajuste passa pela criação de uma praça de restauração, copiando stricto sensus as intervenções no mercado da Ribeira e em Campo de Ourique. Contudo, é notória a intenção de reformular o tecido comercial existente, assim como trazer um novo tipo de clientes, do qual é ilustrativo o propósito das autoridades locais do município de Águeda em tornar o mercado num ponto de referência na região e ao mesmo tempo ser alvo de visita pelos turistas 1 . O ajustamento funcional tem implícita uma certa orientação para um consumo diferenciado mais ocasional e de caráter lúdico — acompanhando, por vezes como âncora, a mudança da área urbana onde se encontra. Isto é validado pelo facto de, em oito dos dez casos da Tabela 1 , a intervenção no mercado estar conectada com intervenções urbanísticas mais abrangentes que ocorrem no seu exterior. Também se realça que num dos mercados, Sines, é explícita a intenção de introduzir novas formas de gestão, o que parece aproximar esta estratégia das adoptadas nos dois mercados de Lisboa inicialmente apresentados.
A motivação para a intervenção
A degradação e o desajustamento funcional são os motivos consensualmente assumidos para a atual intervenção nos mercados. No primeiro caso, os entrevistados destacaram a antiguidade dos edifícios onde os mercados se localizam, já com diversas décadas de existência: “O que motivou a intervenção no mercado foi a sua degradação. O mercado de Famalicão foi inaugurado por volta de 1952-1953 e nunca teve obras” (Câmara Municipal de Famalicão, comunicação pessoal, 29 de abril de 2021). À degradação física junta-se o desajustamento funcional, tal como identificado para o caso do mercado de Loures:
Trata-se de um edifício que começou a funcionar na década de 70, tendo sido alvo de uma intervenção, essencialmente de cariz físico, há aproximadamente vinte anos, sendo que, ainda assim, persistem problemas estruturais e funcionais bastante graves que condicionam a sua competitividade no universo atual do comércio e distribuição locais. ( SIMAB , 2017, p. 13)
Este processo de degradação que se revela não só do ponto da estrutura do edifício, mas também do ponto de vista funcional, valida a opção seguida neste estudo por se mobilizar o quadro concetual da gentrificação para explicar o declínio e recente reabilitação deste tipo de equipamentos comerciais. Nos livros editados por Delgadillo & Niglio (2020a) e por González (2018 a), autores como Pérez et al. (2018), na sua análise dos mercados de Madrid, responsabilizam as autoridades locais pelo estado de declínio destes equipamentos ao não promoveram a sua constante modernização. Intrinsecamente associado ao declínio dos mercados está o ganho de quota de mercado por parte de novos formatos comerciais, tal como assumido por um dos entrevistados, onde “As grandes superfícies acentuaram o declínio dos mercados” (Câmara Municipal de Braga, comunicação pessoal, 08 de novembro de 2021). Neste sentido, como menciona González (2018 b), a recente evolução dos mercados enquadra-se na narrativa, segundo a qual estes equipamentos comerciais declinaram como consequência da natureza evolutiva do comércio. Este entendimento também é corroborado pelo documento de suporte à reabilitação do mercado de Vila Nova de Famalicão, onde se descreve que “a solicitação [de um plano para reabilitação do mercado] é motivada por uma leitura do Mercado em declínio” ( OPIUM, 2016a, p. 5). Face a este declínio que surge como consensual nesta análise empírica, fica por explicar qual o interesse pela reabilitação dos mercados após o seu declínio, respondendo a uma das questões que norteia esta investigação. As respostas a esta pergunta são variadas, sendo o elemento mais transversal, a mais-valia arquitetónica do edificado e a sua relevância que ainda premente do ponto de vista do abastecimento da população:
O Mercado Municipal de Loures é um importante símbolo sociocultural e comercial do concelho e um espaço de referência no quotidiano da cidade de Loures, sendo um centro de compra onde a população encontra concentrados, num único espaço comercial, um conjunto de operadores retalhistas de produtos alimentares perecíveis frescos, bem como de alguns não alimentares. ( SIMAB , 2017, p. 4)
Um dos entrevistados, de uma empresa de consultoria (Empresa Market Consulting, comunicação pessoal, 22 de setembro de 2021) também destacou a dimensão política. Considera que os mercados, ainda que em declínio e em processo de transformação, continuam a possuir relevância em termos políticos e, por isso, a sua reabilitação, mesmo resultando num equipamento gentrificado e com caraterísticas muito diferentes das iniciais, é bem vista por parte da população. Segundo o mesmo entrevistado, isto leva a que as autoridades públicas almejem a mera reabilitação física dos mercados sem levarem em consideração as necessidades da população que serve.
Do conjunto de entrevistas também saiu realçada a relevância social destes equipamentos, enquanto espaços de encontro e de pertença a determinada comunidade (Câmara Municipal de Famalicão, comunicação pessoal, 29 de abril de 2021). Todos estes elementos são corroborados por diversos estudos centrados em outros países, o que releva a dimensão internacional de tal processo. Um elemento extra ao que é tradicionalmente e consensualmente abordado na bibliografia existente é-nos trazido pelo entrevistado envolvido no projeto de reabilitação do mercado de Braga ( Figura 2 ) que realçou que apesar dos mercados continuarem a ser importantes locais de abastecimento, “o atual fenómeno de reabilitação dos mercados tem a ver com a afirmação geral da regeneração urbana das cidades, onde as centralidades identitárias ainda são relevantes” (Câmara Municipal de Braga, comunicação pessoal, 08 de novembro de 2021). A afirmação está de acordo com o que foi dito pelo entrevistado acerca do mercado de Vila Nova de Famalicão, ao declarar que a reabilitação deste mercado “faz parte de um projecto mais abrangente de intervenção no centro da cidade e também se almejou fazer a ligação com o espaço da feira [semanal]” (Câmara Municipal de Braga, comunicação pessoal, 08 de novembro de 2021). O entendimento dos mercados enquanto espaços com relevância ao nível do planeamento urbano também foi realçado na entrevista acerca do mercado de Loures: “no presente, os mercados municipais ainda fazem todo o sentido, ajudam a revitalizar toda a área urbana onde se encontram inseridos” (Câmara Municipal de Loures, comunicação pessoal, 08 de novembro de 2021).
Benchmarking e a transferência de boas práticas
O benchmarking e a forma como os processos de reabilitação e eventualmente o seu desfecho é semelhante em diferentes países foi um aspeto abordado nas entrevistas, por ser um aspecto central para a resposta à questão de investigação definida inicialmente. No atual processo de reabilitação, os mercados são os objetos onde se almeja dotar de melhores níveis de desempenho. Deste modo, e face à vincada participação dos poderes públicos nas distintas fases —do declínio à reabilitação— o benchmarking relaciona-se com a transferência de políticas públicas, entendidas enquanto exemplos de boas práticas em curso em outros contextos geográficos. A este nível, Blake et al. (2021 ) realçam que o princípio subjacente é o da replicação; isto é, os processos, políticas ou outros elementos, identificados como boas práticas, servem como blueprint. Assume-se que se existem desafios semelhantes, as soluções também podem ser idênticas. Nos casos analisados no presente estudo, verificou-se o privilégio pelo recurso a empresas de consultoria que fornecessem indicações acerca das melhores soluções para a reabilitação dos mercados, quer através da adjudicação direta como no caso de Famalicão (Câmara Municipal de Famalicão, comunicação pessoal, 29 de abril de 2021), quer através do concurso de ideias. Contudo, tal como um dos entrevistados nos transmitiu, já existia uma certa ideia prévia do que se queria, muito por influência da informação veiculada pelos órgãos de comunicação social que transmite a imagem de sucesso de alguns mercados, destacando o mercado da Ribeira (Câmara Municipal de Braga, comunicação pessoal, 8 de novembro de 2021). Uma das empresas de consultoria entrevistadas tem colaborado em variados projetos de intervenção em mercados municipais. Uma consulta ao site de Market Consulting 2 demonstra que apesar do papel se efetivar em fases diferentes, o princípio da replicação acima referido se confirma como válido, sobretudo se encarado enquanto uma prática de gestão por parte dos atores responsáveis pela transmissão de boas práticas.
Os mercados tradicionalmente associados a processos internacionais de benchmarking são os que se localizam em Madrid ( Figura 1 ) e em Barcelona, sendo que neste último caso para além da reabilitação de mercados, como o que teve lugar no mercado de Santa Caterina ( Figura 3 ), a incorporação de um supermercado como âncora do equipamento comercial também tem sido destacada ( Figura 4 ).
A nível nacional, destacam-se os mercados da Ribeira e de Campo de Ourique. Uma análise do documento de suporte à reabilitação do mercado de Famalicão confirma esta premissa ( OPIUM, 2016b). O documento, elaborado por uma empresa de consultoria também entrevistada para o presente estudo (Empresa OPIUM, comunicação pessoal, 30 de setembro de 2021), realça os modelos de Barcelona e de Lisboa. Desta forma, o processo de benchmarking e a forma como os modelos assumidos como boas práticas são transferidos obedecem a uma lógica multi-escalar, tal como observado na Figura 5 .
Inerente à transferência de modelos, salienta-se o reconhecimento de alguns elementos específicos, isto é, a gestão público-privada e a incorporação de um supermercado, no caso do modelo de Barcelona, e a gestão público-privada associada à concessão do setor da restauração, no caso do modelo de Lisboa, corroborando estudos prévios sobre o assunto ( Guimarães, 2018 ). Esta relevância da gestão privada é reconhecida no documento de suporte para a reabilitação de um mercado no município de Loures (Moscavide), sendo que a empresa de consultoria destaca que:
A política de gestão comercial tem que estabelecer uma nova forma de entender o mercado por parte dos próprios operadores, que terão que partilhar e assumir os objetivos globais do mercado municipal e, mantendo a independência do seu negócio, contribuir para a estratégia e melhoria do conjunto […] Pretende-se, assim, aumentar o nível de profissionalização do mercado e dos operadores como empresários do seu negócio. (Market Consulting, 2016, p. 8)
O envolvimento dos agentes privados na intervenção realizada nos mercados deve ser lido de forma mais abrangente. Tal como nos transmitido pela entrevista a uma das empresas de consultoria, os investidores privados são necessários para fazer face ao volume de investimento necessário (Empresa OPIUM, comunicação pessoal, 30 de setembro de 2021). No caso dos mercados de Loures, isto não implica que se replique o modelo de Lisboa em que a opção recaiu sobre a praça de restauração, existindo inclusive abertura para que equipamentos como ginásios possam comparticipar a intervenção (Câmara Municipal de Loures, comunicação pessoal, 08 de novembro de 2021). Justificando a opção neoliberal de gestão privada dos mercados, foi sobretudo apontada (Empresa Market Consulting, comunicação pessoal, 22 de setembro de 2021) a necessidade de agilizar mecanismos da gestão diária do mercado, o que se considerou como incompatível por via da maior burocracia a que a gestão pública está obrigada.
Discussão e conclusão
Neste artigo procuramos discutir o atual processo de reabilitação dos mercados municipais em Portugal. Partimos do reconhecido pressusposto de que o comércio é uma atividade dinâmica e sujeita a intensos processos de modernização, sobretudo encetados por agentes privados na busca por maiores rendimentos. Ademais, também se reconhece a ligação do comércio com o espaço urbano, nomeadamente como ao longo das últimas décadas o aparecimento de novos formatos comerciais em novas localizações contribuiu para a estruturação urbana de cidades e regiões em transformação, na sua reconversão para economias pós-industriais. Com isto, alguns dos formatos comerciais, como os mercados municipais, foram negativamente afetados e entraram em declínio. Outrora equipamentos fundamentais na ligação do rural com o urbano, na lógica do escoamento dos produtos dos produtores localizados nas periferias das áreas urbanas e do abastecimento das populações urbanas, o declínio dos mercados municipais coincidiu temporalmente com o surgimento de novos formatos, em especial os hipermercados, mas também a disseminação de outros supermercados de distintas dimensões.
Retomando o primeiro objetivo, confirma-se como útil a mobilização do conceito de gentrificação para analisar a evolução dos mercados municipais, na medida em que permite enquadrar o declínio destes equipamentos comerciais numa mais vasta reorientação liberal das políticas e governação pública. Contextualiza a privatização de algumas competências do sector público, do qual o abastecimento da população é paradigmático. Este aspeto é particularmente evidente no âmbito do comércio alimentar, nomeadamente pela reabilitação dos mercados municipais, equipamentos comerciais que albergam atividades comerciais do interesse público. De acordo com esta última leitura, considera-se que os mercados ainda são equipamentos relevantes para o abastecimento da população e para a manutenção de um sistema comercial diverso. Desta forma, o recurso à estrutura concetual da gentrificação para discutir a evolução recente dos mercados municipais (entre outros, ver González, 2018 a) permite enquadrar o declínio dos mercados, não como um ocaso determinista, mas enquanto resultado do negligenciamento do setor público. De facto, tal como apurado nas entrevistas, apesar de já datarem algumas décadas, os mercados não foram alvo de intervenção por parte do setor público, a quem recaía o ónus da sua manutenção e modernização. Desta forma, a leitura da gentrificação dos mercados deve ser elaborada a montante do que usualmente se faz. A este nível, deve destacar-se que uma parte da bibliografia existente, parte da qual já referida na secção teórica, debruça-se sobre dois momentos: (1) num primeiro momento, acompanha o processo de transformação à medida que o mesmo se desenrola, e (2) num segundo momento, analisa os impactos resultantes de tal transformação. O que as entrevistas nos mostraram é que o declínio atual tem a sua génese na falta de investimento por parte do setor público, o que levou ao surgimento da rent gap associada a processos de gentrificação.
Nos mercados analisados destacam-se alguns aspetos específicos relativos a objetivos definidos para este estudo, como a ausência de relação com processos de turistificação. A justificação para este facto deve-se às características das cidades analisadas, de média dimensão. A ausência do peso do turismo nos processos de reabilitação dos mercados revisados não é, contudo, surpreendente. Inclusive, corrobora alguma bibliografia, como Frago (2017 ) e Carmona (2020 ), que relativamente aos mercados de Barcelona e Madrid, respetivamente, já haviam apurado que nem todos os mercados são suscetíveis à mudança de igual forma. Assim, tal como é possível verificar em diversos capítulos do livro editado por Delgadillo e Niglio (2020b), o processo de reabilitação e gentrificação dos mercados surge essencialmente em equipamentos localizados nos centros históricos de centros urbanos com significativa pressão da atividade turística. Não obstante, ainda que não se possa generalizar a relação entre a turistificação e a atual difusão de projetos de reabilitação de mercados municipais em Portugal, a informação da <tabl1>Tabela 1</tabl1> confirma que, parcialmente, a intervenção nestes equipamentos está associada a processos de transformação urbana das áreas onde se encontram localizados.
Relativamente ao segundo e terceiro objetivo, que de forma mais direta se relacionam com a questão de investigação e hipótese deste trabalho, a transferência de modelos de reabilitação de mercados enquadra- se em estratégias de benchmarking, através das quais os modelos de intervenção nos mercados de Barcelona e de Madrid surgem como referências internacionais em vários dos documentos portugueses analisados. A utilização da reabilitação efetuada nestes mercados enquanto modelos de benchmarking transferíveis para outras latitudes está conforme com estudos de distintos países do continente europeu ( Frago, 2017 ; Guimarães, 2020 ) e sul-americano ( Delgadillo, 2020 ; Salinas, & Cordero, 2018) que os assumem como modelos, a partir dos quais os mercados dos respetivos países foram intervencionados.
Inerente ao benchmarking e à transferência de modelos de intervenção considerados como boas práticas, está o princípio da replicação, em que se assume que face ao declínio dos mercados se adotem medidas que são vistas como bem-sucedidas. Neste aspeto, a análise efetuada salientou dois pontos. Um primeiro ponto é respeitante aos agentes responsáveis pela transferência de boas práticas. Se as autoridades locais são os principais responsáveis pela reabilitação dos mercados, nesta investigação ficou evidente o recurso a empresas privadas de consultoria que assessorem na busca e sugestão das melhores soluções. Desta forma, a transferência dos modelos assumidos como mais relevantes surge como natural. Ademais, a participação das mesmas empresas em projetos de distintas cidades também fomenta a disseminação de modelos semelhantes pelo território nacional. Assim, o princípio da replicação é encontrado não apenas nos mercados que servem como referência, mas também nas empresas de consultoria que intervêm neste processo de intervenção nos mercados municipais. O segundo ponto diz respeito à componente de cada modelo de boas práticas que é efetivamente transferido. Assim, apesar de não existir uma total similaridade quanto ao tipo de mudança efetuada, salienta-se alguns elementos, como a criação de praças de restauração, que está presente em vários projetos, assim como a importância de uma estrutura de gestão. De facto, todos os entrevistados referiram de forma mais ou menos aprofundada a importância de cada mercado ser gerido de forma profissional por uma determinada equipa dedicada ao âmbito comercial, seja através da concessão a atores do setor privado — seguindo os exemplos dos mercado Time Out Ribeira e do mercado de Campo de Ourique, ambos em Lisboa — ou através da constituição de uma equipa no seio da respetiva autarquia que se responsabilize pela gestão, não apenas estratégica, mas também diária, o que foi considerado como essencial.
De forma geral, confirma-se a hipótese de trabalho, ainda que com a ressalva de que o modelo de reabilitação não tem sido transferido na sua totalidade em todos os casos. Reconhecendo-se, transversalmente, que a gestão privada, o ajustamento funcional, e a criação de uma praça de restauração são elementos definidores daquele modelo, também confirmamos que não foram aplicados em todos os novos projetos de reabilitação de mercado. Contudo, se as especificidades locais acabam por interferir em maior ou menor grau com os projetos de reabilitação, a reabilitação dos mercados enquanto contributo para a regeneração urbana da área onde se inserem é um aspeto transversal nos projetos analisados, o que enquadra este tipo de intervenção nos mais abrangentes processos de transformação urbana no contexto da cidade pós-industrial.
Por último, gostávamos de salientar duas linhas de investigação que não foram alvo da presente investigação, mas que podem abrir caminho para futuras investigações. A primeira diz respeito à forma como atualmente os mercados devem incorporar elementos ajustados às necessidades atuais dos consumidores. Se a criação das praças de restauração num dado espaço dos mercados busca atrair novos consumidores, a intervenção realizada no restante espaço físico continua a reproduzir as mesmas práticas comerciais e, grosso modo, a vender os mesmos produtos. Não tencionando estabelecer aqui uma discussão acerca da validade e pertinência de tal procedimento, julgamos, contudo, que é oportuno que tal tema seja discutido, sobretudo almejando a criação de condições para a vitalidade e viabilidade daqueles espaços comerciais. A segunda linha de investigação refere-se à necessidade de se estudar o enquadramento dos mercados municipais no âmbito das cadeias curtas de abastecimento. O que se verifica no presente é que no contexto dos mercados municipais, pelo menos em Portugal, a componente dedicada aquilo que é designado como o mercado dos produtores ou Farmers’ Market na designação inglesa é reduzida, estando o forte da oferta comercial dos mercados associado em primeiro lugar aos mercados abastecedores, que por sua vez estão frequentemente ligados a cadeias de abastecimento longas, o que contraria as atuais preocupações ambientais, nomeadamente os objetivos de desenvolvimento sustentável associados à produção e consumo sustentáveis, assim como a promoção de cidades e comunidades sustentáveis.
Resumo:
Introdução
O enquadramento concetual da gentrificação comercial
Da gentrificação à gentrificação comercial
Turistificação e mudança comercial
A reabilitação dos mercados à luz da teoria da gentrificação
A dimensão internacional da gentrificação dos mercados
Metodologia
A reabilitação dos mercados em Portugal: atores e processos
A motivação para a intervenção
Benchmarking e a transferência de boas práticas
Discussão e conclusão